segunda-feira, 30 de junho de 2008

Da Canção como Sereia (micro-ensaio inspirado no show Maré, de Adriana Calcanhotto)



"Talvez por estar entre o primeiro e o terceiro é que ele tenha ficado tão entre a mulher e o peixe, entre a palavra e o emaranhamento quântico, entre a linguagem e o indizível. Ou entre Ferreira Gullar e Cazuza, entre Augusto de Campos e Dorival Caymmi, entre Cicero e Waly."
Adriana Calcanhotto, sobre seu novo disco, Maré.


Toda forma de arte que tem como suporte o tempo, como a música ou o romance, tende a apoiar-se em uma série de elementos que se revezam nas funções de continuidade - mantendo-se quase inalterados por um período - e de ruptura - propondo caminhos e ritmos inovadores. Há sempre uma tensão entre uma corrente que segue e outra que quer voltar, entre um tema e suas inúmeras variações. Não é sem motivo que o arquétipo do marujo, do herói que parte ao mar e regressa, é tão recorrente, desde Homero até Caymmi.

A canção, ser híbrido de letra e música, apresenta, além dessa tensão comum, uma outra mais fundamental. Nela, a oposição se dá já, a cada instante, no nível formal, entre a palavra e a melodia. Há na canção uma precariedade intrínseca, fundadora de sua multiplicidade semântica. É incapaz de limitar-se ao sentido das frases que enuncia ou das melodias que entoa - diz sempre mais que a letra ou a música separadas. Não é consegue apoiar-se em funções específicas dadas ao som e à palavra. Está essencialmente destinada ao excesso. A canção é - para mantermos as metáforas marítimas - uma sereia, fusão mitológica entre a mulher a fera marinha. Sempre sobra um rabo de peixe na perfeição de seu corpo feminino. Tal quimera, no entanto, embora incapaz da normalidade, antes de ser monstro temível, torna-se a sedutora dona de um encanto elemental, primitivo, irresistível. Da mesma forma, a canção não conseguindo se estabelecer na normalidade da fala cotidiana, a transcende, e atinge o nível de uma fala além da fala, mágica, ritualística, ancestral, que não comunica propriamente, mas envolve o ouvinte em algo que, não sendo reconhecível em si mesmo, ecoa significações profundamente enraizadas no espírito. Paradoxalmente, a canção é capaz de soar ao mesmo tempo estranha, surpreendente - como toda beleza é estranha e surpreendente - e perfeitamente natural, mais natural do que a fala, que não possui essa estranheza esteticamente reveladora. Justamente o equilíbrio, a economia do que é excessivo e estranho é que a torna perfeitamente assimilável, convincente, quase transparente.

Adriana Calcanhotto, em seu mais recente show, nos mostra exatamente isso: a natureza híbrida da sereia-canção. Sabe equilibrar-se entre uma altivez risonha e a seriade aproximadora, a precisão milimétrica das execuções das músicas, do figurino, dos movimentos e a espontaneidade, a surpresa nos sucessos consagrados e a assinatura reconhecível nas novas composições. Talvez pela consciência clara da natureza da canção, pela intimidade de longa data com o paradoxo que liga o que há de econômico e exessivo nessa arte, é que Adriana consegue unir elementos tão díspares e, ao mesmo tempo, alcançar criações que são clara e reconhecivelmente canções e, mais do que isso, canções lindas.

4 comentários:

Luiz Henrique disse...

Lucas, gostei muito do texto, que captou de alguma forma o mistério do equilíbrio da canção e seus significados. Você mergulhou fundo e flutuou nas metáforas marítimas, imagino que o show da Adriana tenha sido ótimo. Abs, Luiz.

Lucas Nicolato disse...

Obrigado, Luiz!
O show realmente foi muito bom.

um abraço,
Lucas

Antonio Cicero disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Antonio Cicero disse...

Lucas,

Também adorei o show. Ele merece as considerações que você faz.

Abraço.